auto da barca do inferno

07/11/2011 15:45


Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplação da sereníssima e muito católica rainha Lianor, nossa senhora, e representado por seu mandado ao poderoso príncipe e mui alto rei Manuel, primeiro de Portugal deste nome. Começa a declaração e argumento da obra. Primeiramente, no presente auto, se fegura que, no ponto que acabamos de espirar, chegamos supitamente a um rio, o qual per força havemos de passar em um de dous batéis que naquele porto estão, scilicet, um deles passa pera o paraíso e o outro pera o inferno: os quais batéis tem cada um seu arrais na proa: o do paraíso um anjo, e o do inferno um arrais infernal e um companheiro.

O primeiro intrelocutor é um Fidalgo que chega com um Paje, que lhe leva um rabo mui comprido e üa cadeira de espaldas. E começa o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha.


DIABO
À barca, à barca, houlá! que temos gentil maré! - Ora venha o carro a ré!

COMPANHEIRO
Feito, feito! Bem está! Vai tu muitieramá, e atesa aquele palanco e despeja aquele banco, pera a gente que virá.

À barca, à barca, hu-u! Asinha, que se quer ir! Oh, que tempo de partir, louvores a Berzebu! - Ora, sus! que fazes tu? Despeja todo esse leito!

COMPANHEIRO
Em boa hora! Feito, feito!

DIABO
Abaixa aramá esse **!

Faze aquela poja lesta e alija aquela driça.

COMPANHEIRO
Oh-oh, caça! Oh-oh, iça, iça!

DIABO
Oh, que caravela esta! Põe bandeiras, que é festa. Verga alta! Âncora a pique! - Ó poderoso dom Anrique, cá vindes vós?... Que cousa é esta?...

Vem o Fidalgo e, chegando ao batel infernal, diz:

FIDALGO
Esta barca onde vai ora, que assi está apercebida?

DIABO
Vai pera a ilha perdida, e há-de partir logo ess'ora.

FIDALGO
Pera lá vai a senhora?

DIABO
Senhor, a vosso serviço.

FIDALGO
Parece-me isso cortiço...

DIABO
Porque a vedes lá de fora.

FIDALGO
Porém, a que terra passais?

DIABO
Pera o inferno, senhor.

FIDALGO
Terra é bem sem-sabor.

DIABO
Quê?... E também cá zombais?

FIDALGO
E passageiros achais pera tal habitação?

DIABO
Vejo-vos eu em feição pera ir ao nosso cais...

FIDALGO
Parece-te a ti assi!...

DIABO
Em que esperas ter guarida?

FIDALGO
Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi.

DIABO
Quem reze sempre por ti?!.. Hi, hi, hi, hi, hi, hi, hi!... E tu viveste a teu prazer, cuidando cá guarecer por que rezam lá por ti?!...

Embarca - ou embarcai... que haveis de ir à derradeira! Mandai meter a cadeira, que assi passou vosso pai.

FIDALGO
Quê? Quê? Quê? Assi lhe vai?!

DIABO
Vai ou vem! Embarcai prestes! Segundo lá escolhestes, assi cá vos contentai.

Pois que já a morte passastes, haveis de passar o rio.

FIDALGO
Não há aqui outro navio?

DIABO
Não, senhor, que este fretastes, e primeiro que expirastes me destes logo sinal.

FIDALGO
Que sinal foi esse tal?

DIABO
Do que vós vos contentastes.

FIDALGO
A estoutra barca me vou. Hou da barca! Para onde is? Ah, barqueiros! Não me ouvis? Respondei-me! Houlá! Hou!... (Pardeus, aviado estou! Cant'a isto é já pior...) Oue jericocins, salvanor! Cuidam cá que são eu grou?

ANJO
Que quereis?

FIDALGO
Que me digais, pois parti tão sem aviso, se a barca do Paraíso é esta em que navegais.

ANJO
Esta é; que demandais?

FIDALGO
Que me leixeis embarcar. Sou fidalgo de solar, é bem que me recolhais.

ANJO
Não se embarca tirania neste batel divinal.

FIDALGO
Não sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria...

ANJO
Pera vossa fantesia mui estreita é esta barca.

FIDALGO
Pera senhor de tal marca nom há aqui mais cortesia?

Venha a prancha e atavio! Levai-me desta ribeira!

ANJO
Não vindes vós de maneira pera entrar neste navio. Essoutro vai mais vazio: a cadeira entrará e o rabo caberá e todo vosso senhorio.

Ireis lá mais espaçoso, vós e vossa senhoria, cuidando na tirania do pobre povo queixoso. E porque, de generoso, desprezastes os pequenos, achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso.

DIABO
À barca, à barca, senhores! Oh! que maré tão de prata! Um ventozinho que mata e valentes remadores!

Diz, cantando:

Vós me veniredes a la mano, a la mano me veniredes.

FIDALGO
Ao Inferno, todavia! Inferno há i pera mi? Oh triste! Enquanto vivi não cuidei que o i havia: Tive que era fantesia! Folgava ser adorado, confiei em meu estado e não vi que me perdia.

Venha essa prancha! Veremos esta barca de tristura.

DIABO
Embarque vossa doçura, que cá nos entenderemos... Tomarês um par de remos, veremos como remais, e, chegando ao nosso cais, todos bem vos serviremos.

FIDALGO
Esperar-me-ês vós aqui, tornarei à outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi. Dia, Que se quer matar por ti?!...

FIDALGO
Isto bem certo o sei eu.

DIABO
Ó namorado sandeu, o maior que nunca vi!...

FIDALGO
Como pod'rá isso ser, que m'escrevia mil dias?

DIABO
Quantas mentiras que lias, e tu... morto de prazer!...

FIDALGO
Pera que é escarnecer, quem nom havia mais no bem?

DIABO
Assi vivas tu, amém, como te tinha querer!

FIDALGO
Isto quanto ao que eu conheço...

DIABO
Pois estando tu expirando, se estava ela requebrando com outro de menos preço.

FIDALGO
Dá-me licença, te peço, que vá ver minha mulher.

DIABO
E ela, por não te ver, despenhar-se-á dum cabeço!

Quanto ela hoje rezou, antre seus gritos e gritas, foi dar graças infinitas a quem a desassombrou.

FIDALGO
Cant'a ela, bem chorou!

DIABO
Nom há i choro de alegria?..

FIDALGO
E as lástimas que dezia?

DIABO
Sua mãe lhas ensinou...

Entrai, meu senhor, entrai: Ei la prancha! Ponde o pé...

FIDALGO
Entremos, pois que assi é.

DIABO
Ora, senhor, descansai, passeai e suspirai. Em tanto virá mais gente.

FIDALGO
Ó barca, como és ardente! Maldito quem em ti vai!

Diz o Diabo ao Moço da cadeira:

DIABO
Nom entras cá! Vai-te d'i! A cadeira é cá sobeja; cousa que esteve na igreja nom se há-de embarcar aqui. Cá lha darão de marfi, marchetada de dolores, com tais modos de lavores, que estará fora de si...

À barca, à barca, boa gente, que queremos dar à vela! Chegar ela! Chegar ela! Muitos e de boamente! Oh! que barca tão valente!

Vem um Onzeneiro, e pergunta ao Arrais do Inferno, dizendo:

ONZENEIRO
Pera onde caminhais?

DIABO
Oh! que má-hora venhais, onzeneiro, meu parente!

Como tardastes vós tanto?

ONZENEIRO
Mais quisera eu lá tardar... Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto.

DIABO
Ora mui muito m'espanto nom vos livrar o dinheiro!...

ONZENEIRO
Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto...

DIABO
Ora entrai, entrai aqui!

ONZENEIRO
Não hei eu i d'embarcar!

DIABO
Oh! que gentil recear, e que cousas pera mi!...

ONZENEIRO
Ainda agora faleci, leixa-me buscar batel!

DIABO
Pesar de Jam Pimentel! Porque não irás aqui?...

ONZENEIRO
E pera onde é a viagem?

DIABO
Pera onde tu hás-de ir.

ONZENEIRO
Havemos logo de partir?

DIABO
Não cures de mais linguagem.

ONZENEIRO
Mas pera onde é a passagem?

DIABO
Pera a infernal comarca.

ONZENEIRO
Dix! Nom vou eu tal barca. Estoutra tem avantagem.

Vai-se à barca do Anjo, e diz:

Hou da barca! Houlá! Hou! Haveis logo de partir?

ANJO
E onde queres tu ir?

ONZENEIRO
Eu pera o Paraíso vou.

ANJO
Pois cant'eu mui fora estou de te levar para lá. Essoutra te levará; vai pera quem te enganou!

ONZENEIRO
Porquê?

ANJO
Porque esse bolsão tomará todo o navio.

ONZENEIRO
Juro a Deus que vai vazio!

ANJO
Não já no teu coração.

ONZENEIRO
Lá me fica, de rondão, minha fazenda e alhea.

ANJO
Ó onzena, como és fea e filha de maldição!

Torna o Onzeneiro à barca do Inferno e diz:

ONZENEIRO
Houlá! Hou! Demo barqueiro! Sabês vós no que me fundo? Quero lá tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro. que aqueloutro marinheiro, porque me vê vir sem nada, dá-me tanta borregada como arrais lá do Barreiro.

DIABO
Entra, entra, e remarás! Nom percamos mais maré!

ONZENEIRO
Todavia...

DIABO
Per força é! Que te pês, cá entrarás! Irás servir Satanás, pois que sempre te ajudou.

ONZENEIRO
Oh! Triste, quem me cegou?

DIABO
Cal'te, que cá chorarás.

Entrando o Onzeneiro no batel, onde achou o Fidalgo embarcado, diz tirando o barrete:

ONZENEIRO
Santa Joana de Valdês! Cá é vossa senhoria?

FIDALGO
Dá ò demo a cortesia!

DIABO
Ouvis? Falai vós cortês! Vós, fidalgo, cuidareis que estais na vossa pousada? Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis!

Vem Joane, o Parvo, e diz ao Arrais do Inferno:

PARVO
Hou daquesta!

DIABO
Quem é?

PARVO
Eu soo. É esta a naviarra nossa?

DIABO
De quem?

PARVO
Dos tolos.

DIABO
Vossa. Entra!

PARVO
De pulo ou de voo? Hou! Pesar de meu avô! Soma, vim adoecer e fui má-hora morrer, e nela, pera mi só.

DIABO
De que morreste?

PARVO
De quê? Samicas de caganeira.

DIABO
De quê?

PARVO
De caga merdeira! Má rabugem que te dê!

DIABO
Entra! Põe aqui o pé!

PARVO
Houlá! Nom tombe o zambuco!

DIABO
Entra, tolaço eunuco, que se nos vai a maré!

PARVO
Aguardai, aguardai, houlá! E onde havemos nós d'ir ter?

DIABO
Ao porto de Lucifer.

PARVO
Ha-á-a...

DIABO
Ó Inferno! Entra cá!

PARVO
Ò Inferno?... Eramá... Hiu! Hiu! Barca do cornudo. Pêro Vinagre, beiçudo, rachador d'Alverca, huhá! Sapateiro da Candosa! Antrecosto de carrapato! Hiu! Hiu! Caga no sapato, filho da grande aleivosa! Tua mulher é tinhosa e há-de parir um sapo chantado no guardanapo! Neto de ca